terça-feira, 16 de outubro de 2007

Passa a Faca

Sempre pensei que afiação de facas fosse coisa simples.

Isso até o dia em que comprei uma chaira achando que conseguiria amolar minhas facas.

Ensaiei pose de cozinheiro, esfreguei feito escoteiro fazendo fogueirinha e nada adiantou. As coitadas continuavam tão cegas que dava vontade de contratar um pastor alemão para guiá-las no corte.

Foi então que me contaram que chairas não fazem afiação....elas só servem para polir o fio das facas.

- Humm...legal...só agora é que me dizem isso - pensei eu com cara de pastel.

É bem verdade que aconselham a usar a chairas sempre que se inicia qualquer atividade na cozinha (até porque o efeito de cena é excelente e impressiona pacas), mas se as facas já estiverem sem corte, de nada vai adiantar. Nesses casos, o melhor mesmo é uma boa afiação.

E foi o que fiz.
Comprei uma pedra de amolar vagabunda e me meti a afiar as minhas facas.
Esfrega, esfrega, esfrega e o corte ficou uma droga.
Tentei pela segunda vez e ficou menos cortante ainda.
Tentei a terceira, a quarta, a quinta vez...e o máximo que consegui foram lâminas cada vez menores.

Por fim, me dei por vencido e com duas facas a menos no cepo, fui atrás de quem realmente entendesse do “riscado”.

E quem melhor do que seu Antunes, açougueiro espanhol baixinho, de paciência curta e longa experiência nas artes das carnes e facas. Liguei para ele e passei quase uma hora explicando as minhas intenções e o que precisava. Finalmente conseguimos combinar para o final de semana seguinte.

Sábado de manhã logo cedo, armado de facas e pedras até os dentes, lá fui eu bater na porta do açougue para ter minhas aulas.

Cheguei cheio de vontade, mas seu Antunes estava estranhamente imbuído numa interpretação teatral de mestre Shao Lin chinês. Começou lentamente a explicar que amolar facas nada mais era do que atritar uma lâmina na pedra, e afiação era tão somente retirar “controladamente” o material das laterais do gume da faca de modo a obter um fio mais fino.

- Então - já fui interrompendo - isso eu já sei e é o que estou fazendo. Mas porque não estou conseguindo resultados quando amolo minhas facas?

Com típica “paciência espanhola”, meu mestre perdeu a pose e perguntou o que eu estava fazendo ali se sabia tanto;. "delicadamente" me mandou calar a boca e continuou.

Para se afiar direito, é preciso prestar muita atenção ao ângulo de posicionamento da faca durante a afiação. Explicou que quanto menor for este ângulo, maior poder de corte a lâmina, mas por outro lado, a durabilidade do fio fica comprometida com a possibilidade de, a qualquer impacto, o gume entortar ou quebrar.


Para facilitar, até montei uma tabelinha com os ângulos de amolação de cada instrumento:

  • Ângulos abaixo de 17 graus são restritos a instrumentos de corte do tipo navalha e emprego cirúrgico;
  • Ângulos entre 17 e 20 graus, que são os que nos interessam, são os ângulos ideais para facas destinadas ao trabalho com alimentos em geral, incluindo-se aquelas para filetar peixes;
  • Ângulos entre 20 e 23 graus são recomendados para facas de caça, canivetes e outros instrumentos de uso geral;
  • Ângulos entre 23 e 25 graus, são os adequados para facas pesadas e;
  • Ângulos entre 25 e 30 graus são os utilizados em facões, trinchantes, machados e assemelhados.

Ainda fazendo estilo monge tibetano, me indicou o caminho até os fundos do açougue onde, presas a uma mesa, estavam três pedras retangulares bem antigas. Contou que tinham vindo da Espanha e ainda hoje as usava.

Passando a mão em cima de cada uma delas, mostrou as diferenças de granulação e , aleatoriamente, pegou um facão que estava no cepo ao lado e pôs-se a demonstrar que quanto mais grossa era a granulação da pedra, maiores eram as partículas metálicas retiradas, o que também tornava o processo de afiação bem mais rápido. Mas por outro lado, a retirada das partículas grandes resultava em uma superfície áspera e de pouco corte. Então continuou com o procedimento auxiliado por outras pedras de granas cada vez mais finas, até obter um fio perfeito e o acabamento desejado.


Nessa hora é preciso um aparte.
Após testar a faca que o seu Antunes acabara de amolar, comecei a pensar no apego que sempre tive pela ponta dos meus dedos. Expliquei que não precisava de algo tão afiado quanto aquele bisturi cirúrgico de 40 centímetros....afinal eram apenas brincadeiras culinárias de final de semana.
Então ele me orientou a afiar em ângulo de 20º, usar apenas uma pedra de granulação média, em seguida uma de granulação fina e terminando o processo dar acabamento com a chaira.
É o que tenho feito desde então. Os cortes têm-se demonstrado excelentes e mais do que suficientes para
as experiências culinárias e preservação das minhas impressões digitais.

Bom, sabendo de tudo isso, achei que já era hora dele começar a me ensinar a amolar minhas facas.
Era o que eu pensava....

Seu Antunes retomou a ladainha dizendo que dependendo da pedra de amolar, e se ela for nova, antes de qualquer procedimento é preciso “temperá-la”. Nessa hora, por um segundo, perdi a oportunidade de ficar com a minha boca fechada e soltei uma piadinha:

- Como assim? Tem que temperar com sal, pimenta e cebola?!?!

Foi o que bastou.
O espanhol deixou cair a máscara e despejou uma enxurrada de palavrões e impropérios que tive que ouvir calado. Depois, como se nada tivesse acontecido, voltou ao figurino zen-budista e continuou contando que pedras de afiar são porosas, e por assim serem, é preciso selá-las usando vaselina sólida e uma vasilha para derreter em banho-maria.

A essa altura do campeonato, eu já tinha na ponta da língua o destino que ele poderia dar para a vaselina e as pedras, mas resolvi ficar quieto, até porque o homem ainda estava com o facão recém afiado na mão.

E as explicações continuaram. Ensinou que para temperar uma pedra nova, é preciso colocá-la num recipiente com vaselina derretida e quando os poros estivessem completamente preenchidos (parar de sair bolhas), era só retirar e deixar escorrer até esfriar.


Considerando-se que a pedra tenha sido temperada, agora é hora de fixá-la a bancada. Para trabalhar é importante que a pedra esteja bem firme em uma superfície horizontal estável. Isso pode ser feito com auxílio de morsa ou caixa específica, mas mesmo um pedaço de pano que permita o trabalho sem movimentações, é suficiente.


Depois de explicar como, e a que altura suas pedras estavam fixadas, seu Antunes mostrou que é sempre preciso aplicar uma pequena camada de líquido lubrificante por sobre a superfície da pedra antes e durante a amolação. É esse lubrificante que irá ajudar no deslizamento da lâmina e facilitar na remoção das partículas que se soltam da pedra e da faca. Em pesquisas na internet, descobri que existem fórmulas preparadas pelos próprios fabricantes das pedras. Uma outra possibilidade é o uso de óleo mineral extra-fino, mas por via das dúvidas, verifique no panfleto técnico que acompanha a sua pedra qual o produto recomendado pelo fabricante. Seu Antunes usou somente água durante a sua afiação, mas recomendou uma mistura de água, álcool e glicerina que disse dar excelentes resultados.


Ufa....finalmente começamos a afiar.
Empunhada firmemente, a faca deve ser colocada com o fio de sua lâmina o mais próximo possível dos 20º de inclinação em relação à pedra de amolar. Forçando com média pressão contra a superfície de grana média, e sempre a partir da base da lâmina para a ponta, percorra com a faca toda a extensão da pedra. Os movimentos devem ser uniformes e cadenciados, mantendo-se sempre a atenção ao ângulo de afiação e direção do movimento. Repita essa operação umas três ou quatro vezes. Com cuidado, passe os dedos (a favor do fio), do lado contrário ao que se está afiando até perceber que uma fina rebarbinha tenha se formado.


- Formou?
- Perfeito!


Agora é hora de mudar o lado da lâmina.
Mantendo-se a mesma pressão, repita o processo do outro lado até a formação de nova rebarba. Quando a rebarba se formar, vamos mudar de lado novamente. Dê uma verificada na lubrificação da pedra e aplicando pressão menor do que anteriormente, repita o procedimento, de um lado e do outro, sempre diminuindo a pressão exercida a cada duas viradas de lâmina. Continue repetidas vezes com o procedimento, até não mais aplicar qualquer pressão e quase não sentir a formação de rebarbas. Quando chegar nesse ponto, é hora de se trocar de pedra.


Passe para a pedra de grana mais fina, lubrifique e siga exatamente o mesmo procedimento que usou com a pedra anterior. Repita o processo até obter o fio desejado. Agora sim, nossa faca está afiada.


Mas não pronta para uso, porque agora é preciso assentar o fio. Lembram que eu disse no começo do texto que a chaira não servia para afiar?

- Então...


Mantendo-se o mesmo ângulo usado na afiação, agora vamos passar o fio da faca repetidas vezes por sobre a chaira para assentar e polir o gume que acabamos de afiar. Passe um pano limpo em ambos os lados do fio e está pronta para uso.


No finalzinho, o espanhol ainda me passou mais duas dicas.
- Pedras de amolar, depois de usadas, devem ser lavadas em água corrente para manter a abrasão, e;
- Não se guarda faca em gaveta. O cepo resguarda o fio além de ser infinitamente mais seguro.


Bom...terminada a aula e recebida as recomendações, estou eu me a despedir quando um dos açougueiros passa a mão, justamente em cima da mesa onde seu Antunes deixara a faca recém amolada. Por sorte o corte não é profundo, mas mesmo assim foi um talho razoável.


Para minha surpresa, todos os funcionários, inclusive o que acabara de se cortar, começam a rir e a xingar o patrão de tudo o quanto era palavrão. Entre risadas, eles contaram que quando deixam alguma faca desguarnecida sobre o balcão, ou não usam o cepo, seu Antunes tem o hábito de despejar todos os impropérios que aprendeu ao longo da vida.
E os xingamentos de agora...
Eram apenas uma pequena retribuição pela "boa educação" do espanhol.


Depois dos esporros que tomei, até eu sai de lá me sentindo um pouco vingado.
rsrsrsrsr


Ehhhh....velho boca suja.

2 comentários:

Flávia disse...

Já usei alecrim fresco sim! Mas o alecrim, assim como o alho, são algum dos produtos que me permito usar secos. O alecrim fresco tem aquele gosto "verde" e perfume muito bons, mas são uma beleza para se errar na medida! Com o seco mantêm-se o perfume e possibilidade de errar com ele é mínima. Já o alho seco não me causa indigestão e também dá um perfume, o que no dia-a-dia me quebra um galhão (além de não deixar minha mão ultra fedida, hehehe). Agora, tem coisas secas que realmente não passam, como salsinha, cebolinha, ou uma vez que vi numa casa um manjericão seco! Nem tente experimentar, hehehe. Orégano é tolerável seco, mas realmente o fresco é muito gostoso.

Unknown disse...

Você pode utilizar uma lixadeira de cinta, com a lixa de granulometria fina, no mínimo 300, é muito mais fácil e rápido, e o fio já sai polido.